Acordam-me. Alguém acorda-me sempre. Na maior parte dos dias é a cadela, lá para as 8h. Hoje foi às 7 e tal.
Passei a noite a acordar. Ela queria dar-me a mão. Ela, a Marta e não a cadela. Queria também dormir em cima do meu braço com a minha mão posicionada na barriga. Não é fácil mas está doente e faço esse esforço. Acordou mil vezes. Queria água, tinha febre, tossia e puxava o vómito, entrava em pânico porque não queria vomitar.
É preciso dar banhos, dão-se banhos. É preciso servir pequenos almoços, servem-se pequenos almoços. É preciso limpar os despojos do pequeno almoço na mesa e no chão (às vezes até na parede). Tento dividir o tempo entre dar-lhes atenção e tratar da roupa e da arrumação. Nem sempre é fácil. Eles entendem-me como "aquele mordomo que está sempre aqui de serviço 24/7".
Estão todos a ver um filme, tenho aqui um tempinho de chill out em que posso pensar na vida. Olho de relance para o relógio.
Fónix, almoço.
Inventar almoço.
Uns gostam disto, outros gostam daquilo, tento encontrar o meio termo. Não me apetecia nada sujar a cozinha, não me apetecia pegar em tachos. Faço 300 piscinas entre a cozinha e a sala para levar tudo para a mesa. Hoje ninguém se lembrou de me ajudar. Continuo na minha tarefa de mordomo 24/7 transparente mas indispensável (quero eu acreditar). Falta sempre alguma coisa. Levanto-me mais 3 ou 4 vezes. Quando começo a almoçar já os primeiros começam a falar em sobremesa. Começa a negociata. Se queres comer bolo tens que comer uma peça de fruta.
Quando dou por mim, perdida na introspeção possível, já estou sozinha à mesa. Um está deitado no chão a brincar com carros, as outras duas foram para cozinha comer a sobremesa e a que falta vai para o sofá.
Sozinha.
A mesa está de pantanas. Arroz, porque é que faço arroz? Há arroz em todo o lado, está tudo revirado. Acabo de comer deprimida pelo momento de retrocesso que se vai seguir. Voltar a pôr cozinha e sala com cara de gente outra vez.
Olho para tudo e sinto desânimo. Falta muito para começar a escola? Espera, nem isso me dá alento, os mais novos continuam em casa (não tiveram vaga). Ah e também ainda não sei os horários. A quantas pessoas vou ter que dar almoço todos os dias? A do meio tem sempre o mesmo horário mas a mais velha não.
Quantas vezes varro o chão por dia? Quantas vezes apanho os brinquedos do chão? Quantas máquinas de roupa faço por semana? Vale a pena fazer? Vai chover hoje? Chove amanhã? Será que dá tempo para secar até amanhã? Não está vento nenhum, não seca nada.
Tenho que fazer camas de lavado. Tenho que pintar o quarto antes que o outono chegue. Tenho que fazer cimento para colocar em certas zonas externas da casa. O que é que vou fazer com aquele quarto? O que é que vou fazer no aniversário dos gémeos? Porque é que os nossos aniversários são todos de seguida?
Foram todos lá para cima. Silêncio. Não, o chão cheio de arroz chama por mim, é a voz da minha mãe a dizer "vocês nunca têm vontade de nada!" - isso não me deixa aproveitar o silêncio.
Preciso arrebitar, o chão chama por mim. Tudo o que me apetecia era escurecer o quarto, tapar-me toda, desligar os ouvidos e dormir umas quantas horas, dias, semanas, vidas. Podia acordar noutra vida. Se possível numa mais calma.
Mas a cabeça não pára. Mil pensamentos, mil incertezas, mil angustias.
Tenho que levar o penico lá para cima, não vá a Marta descuidar-se. Levo também uma fralda e toalhitas porque ele faz sempre coco a seguir ao almoço. Será que já deram comida ao peixe? Será que já lhes expliquei que não se pode alimentar demais o peixe?
Não tenho uma conversa com ninguém há muitas horas, exceto esta conversa em loop que acontece dentro da minha cabeça, todos os dias a toda a hora.