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Raramente digo o que penso, assim que penso. Guardo para depois as minhas verdades mesquinhas que, mais tarde, ficam adornadas de argumentações irrefutáveis, que me conferem a calma necessária para as dizer em voz alta. Aprendi a deixar para depois, a retardar a recompensa, a adiar o momento em prol da minha “sagrada” postura, em prol de uma imagem que odeio e alimento.
É como se tivesse uma sombra a perseguir-me, um animal que não me deixa em paz simplesmente porque o alimentei uma vez. Simplesmente porque lhe dei autorização para entrar e esqueci-me entretanto onde fica a porta. Agora teima em proteger-me, esse animal esfomeado, parte de mim e por mim criado. Arrasto-o penosamente e faço-o mostrar os dentes sempre que me sinto ameaçada.
Mas nem sei de quem tenho mais medo…das ameaças exteriores, que geralmente nem ameaças são, ou desse animal que teima em colar-se à minha pele?!
Às vezes agradeço-lhe por afastar tanta gente que, não sei bem porquê, acha que não mereço as coisas que conquisto e aplaude vergonhosamente os meus fracassos. E essas pessoas temem-me sem perceberem que não sou eu que as assusto, não sou eu que incho o peito e levanto a sobrancelha.
Outras vezes rogo-lhe pragas, mando-o para longe, para um canto da sala…e ele ali fica, vergado sobre si, no escuro a chorar. É sempre no escuro que ele chora, que lambe vagarosamente as cicatrizes que não saram, abre o peito a si mesmo e procura pelo espaço que o coração deixou vazio. E sente-se só, sente-se a cada dia mais só e a cada dia mais só teima em ficar, orgulhoso animal camuflado de uma racionalidade falsa. Eu tenho pena dele mais uma vez, e nego-lhe que tenho pena por respeito ao seu orgulho.
Quero que ele me deixe, que se liberte de mim, que me liberte a mim. Quero ser capaz de viver sem ele, quero ser capaz de deixá-lo ir. Mas enquanto o observo ali triste naquele canto, daquela casa, apetece-me dizer-lhe obrigado. Admiro-o por tudo a que se sujeitou em meu nome, por ter dado tantas vezes a cara por mim, por todas as lutas e provações que já passamos. Quanto o conheci não o conseguia dominar e a fera soltava-se de garras afiadas e arrastava à sua frente tudo o que mexesse. Depois, com o tempo, foi-se deixando domesticar e a sabedoria, aliada à velhice (sim, porque os animais não vivem tanto como nós) ensinou-o que não são precisos mais do que silêncios incómodos para assustar quem se aproxima. Agora sinto-o velho e cansado, farto das lutas, farto de ter sempre a mesma expressão de indiferença, o mesmo olhar distante, farto de viver comigo, viciado no altruísmo de me socorrer.
Amo-o e odeio-o por ser tão confortavelmente irreal quanto assustadoramente verdadeiro.
1 comentário:
O animal não é mais forte. Só parece. Ele protege-te, mas de vez em quando tens de lhe mostrar quem é que manda.
Às vezes acho que preferias viver numa grande bola de sabão. Tu vias tudo para fora, e quem olhasse só via o colorido do sabão. Mas cuidado, as bolas de sabão rebentam com facilidade... São bonitas mas frágeis. "É preciso ser-se forte, ser-se forte e não ter medo", ok? :)
E quando a tua bola de sabão rebentar, "vai que eu olho por ti" (esteja eu onde estiver)*******
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