Cresci numa altura em que andar na rua sozinha não era problema. Não havia tanta preocupação com raptores e pedófilos (e raptores pedófilos). Quando não estava na escola estava na rua. Tinha amigos na zona onde a minha avó vivia, na rua da garagem dos meus avós (que era outra) e na minha própria rua. Quando não tinha amigos num sítio ia até outro e conseguia sempre encontrar alguém com vontade de brincar comigo.
É óbvio que o nosso nível de liberdade dependia das nossas avós. Havia avós que só deixavam os netos irem para a rua depois de fazer os trabalhos de casa, outras só depois do lanche.
A minha não tinha essas regras (só muito mais tarde é que me apercebi de que isso não era muito bom). Chegava a casa da escola, depositava a mala ao fundo das escadas, dava um grito "Vooó, já cheguei, vou para a rua!" e lá ia eu. Não havia regras, não havia horas, não havia lanche nem trabalhos de casa.
Num dia cinzento lá fiz o mesmo ritual e não consegui encontrar ninguém para brincar. Entretanto caía uma chuva miudinha e eu não me abriguei, andei por aqui e por ali a pisar as poças dessa chuva, cada vez mais forte.
O clímax da minha vagabunda dança à chuva foi deitar-me no chão, numa lateral da estrada, por onde a água corria com mais força. Lembro-me perfeitamente de pensar: "Que fixe!"
Quando cheguei a casa entrei com normalidade, na minha cabeça infantil e imatura não havia nada de diferente em mim. A minha avó ficou em choque e começou imediatamente a mudar-me a roupa e a secar-me o cabelo. Só dizia: "A tua mãe está quase a chegar, se te vê assim vai ficar chateada!"
Escusado será dizer que um dia o verniz estalou e a minha vida sem regras acabou. Comecei a ter chave de casa, a almoçar sozinha e a voltar à escola sozinha.
Os meus pais concluíram que se sentiam mais seguros de me imporem regras e de eu ser responsável por cumpri-las. Nunca lhes falhei. A autoridade distante deles tinha muito poder sobre mim. Nunca perdi a chave de casa, nunca cheguei atrasada à escola, nunca deixei de almoçar. Nunca me proibiram de ver os meus avós apesar do verniz estalado entre eles. Conseguiram sempre manter-me fora das quezílias dos adultos e isso fazia-me feliz, muito feliz mesmo. Não tinha nada contra os meus avós e a liberdade que me davam. Os meus pais foram sábios na decisão que tomaram e eu passei de menina de rua a menina mais crescida e responsável.
3 comentários:
Já sabes o que eu penso dessa história da chuva: Aquapaaaaarque!! :D
Os teus pais foram sábios a separar as águas.
Pois foram, até porque conheço uns que não sabem separá-las... Enfim...
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