domingo, setembro 03, 2006

O pó dos dias



“A vida levanta pó que se farta. É o trabalho, os amigos, os amores insatisfeitos, a rotina que nos engole. São as crianças e o casamento, os pais e os irmãos, os sonhos (e as acrobacias com que os iludimos), e mais até. Fica no ar, cola-se a nós, respiramo-lo com parcimónia, e entranha-se (bem fundo) como uma sereia que encanta e nos adormece de sossego.
O pó dos dias não nos irrita as mucosas: inflama o nosso olhar e aloja-se, como um vírus que aí encontra um hospedeiro, no modo como deixamos de escutar com o coração e nos contentamos em ouvir. Resignadamente, em ouvir. Mesmo que, para fugirmos dele, como uma melga que se insinua nos ouvidos, levantamos mais pó, e mais pó, evitando que ele assente, devagar, e nos puxe – enfim – para pensar.
O pó dos dias leva a que imaginemos que a vida corre por si. Sem que precise de um mestre de costa ou de um homem do leme. Conduz-nos para veredas íngremes e para couraças escorregadias. Faz das pessoas vultos, e parece tornar opaco o nosso querer. Ah! E obriga-nos a lamentar, quase para sempre, o quanto desejávamos transformar o pó dos dias numa manhã de sol. Se pudéssemos… é claro.
Nem sempre querer é poder. Muitas vezes, quer-se e não se pode. A diferença está entre querer…e acreditar que se pode.
Sempre que acreditamos, os milagres acontecem. E aquilo que falta a quem quer (não pode) é um «vai, que eu olho por ti». Alguém que, algures na nossa vida, nos tenha dado a suprema bondade de acreditar naquilo em que acreditamos, e de querer o que nós queremos, que transforma o querer em poder.
Em verdade, o truque esconde-se neste pequeno pormenor: quando se quer, ninguém consegue ir – mesmo que vá pelos seus sonhos – contra todos os que, afirmando que gostam de nós, jamais nos dizem: «vai, que eu serei a tua âncora». Ou «vai, que eu olho por ti». (Por vezes, dizem mesmo, embrulhado num silêncio cobarde: «se fores, deixo de olhar para ti»).

Todos nós precisamos duma âncora para que os milagres aconteçam e, assim, se vença o pó dos dias. E talvez seja isso o que a vida tem de mais desconcertante: não são os ventos nem as marés, só as âncoras… nos permitem navegar.”

Eduardo Sá

1 comentário:

Anónimo disse...

A vida levanta muito pó. E o pó levanta muita vida também. Eu sou alérgica ao pó. Mas o pó não é alérgico a mim. E ainda bem, porque às vezes fico alérgica à vida, e que aconteceria se a vida ficasse alérgica a mim? Tudo deve ter uma dose certa. Muito pó faz mal. Muita vida também. Mas sem pó, a vida não tinha grande piada. E sem vida, nunca haveria pó! Isto tudo para dizer que eu não acredito em milagres, mas que os há, há! Com confiança ou sem confiança, de vez em quando lá se levanta o pó certo e a vida certa vem bater-nos à porta. Por muito ou pouco tempo, não se sabe. Já dizia a Amália: "Sabe-se lá, se asorte é boa, é boa ou má". E a vida é como a sorte, portanto. E como os barcos que vão e vêm e parece que vão sempre mais do que voltam (e as pessoas também). Com âncora ou sem âncora, «vai, que eu olho por ti».