A minha professora da primária adorava ouvir-nos cantar. Havia cantoria todos os dias. Ela era fã da Ana Faria e nós também começámos a ser, sabíamos todas as músicas e todos os dias ensaiávamos para a grande festa de final de ano. Para além das músicas da Ana Faria também declamávamos poemas e fazíamos pequenas dramatizações de textos.
Na festa de final de ano eu declamei o Mar Português do Fernando Pessoa, embora quisesse mesmo declamar O mostrengo, também do Fernando Pessoa. A minha colega Marisa ficou com o mostrengo, ela era mesmo dotada para as artes, cantava muito bem e declamava muito bem também. O mostrengo, bem declamado é um poema que me arrepia ainda hoje. O Mar Português não lhe fica atrás. Ainda me lembro de andar pelos cantos a dizer os versos todos, versos esses que ainda sei de cor. O que é certo é que já sabíamos poemas do Fernando Pessoa na primária...grande nível!
Mar Português
"Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu."
O mostrengo
"O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse, “Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?”
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»
“De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?”
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso.
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!"
2 comentários:
Tão bom!!
Excelente Fernando Pessoa!
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